quinta-feira, 3 de abril de 2014

A arca das vaidades

Ontem fui ver a ante-estreia do filme Noé.
Noah, no original, trailer aqui.

Adoro ir a ante-estreias.
Detesto ir a ante-estreias.

Adoro porque me agrada a oportunidade de ver filmes antecipadamente. Como se uns dias fizessem toda a diferença. Como se regressasse do futuro.

Um pequeno poder é distribuído à saída da sala: se nos passarem à frente na fila do café, se não nos deixarem entrar primeiro no elevador ou se nos olharem uns graus mais de lado, vomitamos o filme todo e lá se vai a vossa experiência.

Não aplicável ao filme de ontem, claro. Que, com mais ou menos conhecimento da Bíblia, todos temos a ideia que o Noé não andou a construir uma marquise na casa de praia da Quarteira, com o objetivo de juntar peúgas aos pares, e assim evitar o flagelo da meia única que, com cara triste, nos olha do alguidar quando a tiramos da máquina de lavar. Molhada, enrugada e órfã.

Ainda assim, posso dizer-vos que esta versão é algo livre, com apontamentos hollywoodescos.

Quando achei que a minha penitência, por não ter comido em miúda a sopa até ao fim, tinha terminado nos últimos acordes com que o Russel Crowe me violentou os tímpanos no Les Miserables, estava enganada. Regressou toda a fruta que andei a esconder pela casa da minha avó, quando lá ficava nos Verões da infância e juntas procurávamos reduzir os litros de vitamina C que a minha mãezinha me queria enfiar goela abaixo - via quantidades diárias industriais de clementinas. Enfiando citrinos alaranjados em tudo o que era estante de livros ou gaveta de roupa interior, para evitar a horrenda provação, estou em crer que ainda hoje vive algures uma laranja-passa, enrugada pelo correr dos anos e triste de solidão, frustrada por não ter sido comida, como seria sua missão de vida. E por isso fui castigada.

Como? Saibam os cinéfilos leitores que Mr. Crowe arranjou forma de fazer cantar o seu Noé. Ou melhor, de fazer “cantar” o seu Noé. Não vão sem aviso. Arrisquem os que conseguirem. Passa depressa mas deixa marcas.

Entretanto, já disse que detesto ir a ante-estreias?

Detesto. Os pavões, os cata-ventos e as pseudo-famosas. A festa do croquete que precede a emissão da película é uma passarela de clichés rosa-choque.

Estavam lá todos. As atrizes que são sempre protagonistas, as atrizes que são sempre empregadas domésticas, os atores-modelo com os seus metroenoventa de altura e crânios XS, as loiras manequins com pernas até às orelhas, as tias Purezas e Xaxão, de cara esticada até à parte de trás do pescoço, os tios metidos em calças jeans encarnadas compradas na Loja das Meias e a chamarem-se diminutivos ridículos, seguidos de apelidos com pelo menos uma consoante repetida. Os mais distintos, com hifenes. Mas todos falidos e mortos de fome.

É como uma estância balnear caída em desgraça onde, em vez de pessoas normais, se passeiam criaturas girassol que giram conforme se mexem os flashes, caras castanhas engelhadas por anos de praia do Ancão e outras anormalmente bonitas mas profundamente ocas.

Não aprecio o constante avaliar de valor humano pelo número de vezes em que a legenda com o nome, na cobertura deste tipo de eventos - na página 50 da Caras - não estava incorreta. Coisas cá minhas.

Um ângulo curioso neste filme é o piscar de olhos à comunidade vegetariana e animalista em geral. O objetivo de Deus com a construção da arca, dito e repetido durante toda a história, é salvar os inocentes: os animais. Noé e a família condenam a caça e não comem animais (ficou por apurar se ingeriam bagas goji, sementes de linhaça e spirulina).

Os espetadores mais católicos devem preparar-se para um Noé mais negro - Velho Testamento à séria. Um gladiador bíblico, no fundo. O amor e a compaixão são para os animais. As pessoas que se f*dam.

E f*oderam!
(vá lá, não estraguei nada o fim!) (toda a gente já sabia, certo...?)


7 comentários:

  1. Eu não li a biblia por isso isto tudo são spoilers,shame on you!

    Cuidado quando dizes mal das bagas goji,caiem-te já em cima a turma fanatica dos sumos,vegetais e derivados.São piores que a inquisição ;)

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  2. Não era filme que me suscitasse qualquer curiosidade... Portanto, plenamente satisfeito com o teu bonito resumo final... :)

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  3. Gosto do poster do filme, cativa os nerds como eu que não conhecem os desígnios do Senhor a ir ver o filme.

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    1. O poster é como a casinha de chocolate na floresta. Não caia nisso.

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  4. No meio de tudo isto fiquei curiosa em ver o filme. ;)
    beijinho

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