quinta-feira, 8 de maio de 2014

E nós, em pé

Quantos de nós percorrem, como almas penadas dos afetos, os solitários caminhos dos desencontros amorosos?

Quantos acordam no final de um jogo de cadeiras?
A música, parou.
Passam-se os olhos pela sala e, até onde a vista alcança, todos estão sentados, aninhados num compromisso, olhos postos no futuro, regaços mornos, barrigas cheias, projetos, planos. Vida.

E nós, em pé.

Quantos riem de boca aberta ao vislumbrar no horizonte frondosos oásis de afeto?
Cantos da boca esbranquiçados, secos e colados da ausência. Pernas e pés cansados do caminho. Almas já plenas de esperança, capazes de saborear mesmo de longe a plenitude do encontro.
E no minuto seguinte, o pontapé seco e bruto da realidade, mesmo no estômago, acompanha três silabas que ferem: miragem.

Quantos corações - gigantes, cheios, a transbordar - batem em peitos de gente zombie? Gente que, por ter morrido uma, duas, dez vezes no amor, não sabe mais o que fazer, esquecida das regras de ser só emoção e deixar o gosto de cérebro para outra gente zombie. Da que é a fingir.

Quantos sonham com o sorriso de alguém que já conhecem? Com o calor do abraço que adivinham? Com o gosto de um beijo de amizade reconvertida em amor? Que nunca chega.

E nós, em pé.

Olhos postos na sobrevivência, nesta selva que agora é feita de casas verticais, de máquinas que não sabemos como funcionam, de carreiras, de barbas aparadas e de dermes imaculadas com as curvas certas nos sítios certos - e meio perdidos, seguimos à procura de quem nos envolva em braços que dizem que pertencemos. Que podemos ser. Que não faz mal falhar. Que ali descansamos.

Mulheres que amam homens que amam outras mulheres. Homens que amam homens e têm medo. Amigos que amam amigos. Amores destruídos que se querem recuperar. Famílias que já não são. Desencontros.

E nós, em pé.

E o tempo passa e cada vez se arrastam mais os pés e mudar a vida seria tão difícil e é preciso repensar tudo e depois alguém diz o que não se quer ouvir e pensa-se que o caminho é demasiado longo e talvez se viaje melhor de braços soltos e afinal o silêncio é de ouro e eu não quero apanhar cuecas sujas.

E então seguimos, a fazer eco, porque afinal somos meio vazios quando estamos vazios, e continuamos, dizendo que assim é que é.

Até um dia aparecer alguém com uma cadeira.
E nos sorrir.

E nós, em pé,
lhe sorrirmos de volta.


7 comentários:

  1. Fosga-se ó MMS... Profundo, este texto! ADOREI!

    Posso só perguntar se já tens cadeira onde te sentar ou não?

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  2. Realmente, é isso tudo sem tirar nem por, gostei imenso do texto. Sempre andei de pé, por vezes doem-me as pernas mas continuo a andar bem de pé, que remédio porque o caminho faz-se andando.
    Já não peço uma cadeira mas um por vezes um branquinho para descansar um bocado já não era mau...

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  3. Anónimo10:53

    E nós em pé ou " À espera de GODOT"

    Texto interessante mas essencialmente derrotista, não o fim que é triunfal e importado diretamente de Hollywood ( o cowboy aparece com uma cadeira, mas duvido..... que a autora se queira sentar)

    porquê?

    parece-me que a heroína deste filme está presa num guião cujas palavras foram rasteiradas pelas armadilhas da vida.

    Aguardamos cenas dos próximos capítulos.


    XanaxXR

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  4. Gostei do texto! A mim tiraram-me a cadeira... Dei um grande bate-cu no chão e levantei-me. De momento estou em pé, a apreciar o que se passa à volta.

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  5. Estar em pé não me parece assim tão mau.......
    Vai-te sentando por momentos para descansar ou para cansar um pouco.

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  6. Todos temos direito a sentar!
    :))))))
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